Publicado em 1971, Incidente em Antares é a última obra de ficção de Érico Veríssimo e um de seus romances mais ousados e engenhosos. O autor, conhecido por seu estilo elegante e crítico, entrega aqui uma narrativa marcada pelo humor ácido, pela sátira política e por um toque fantástico que subverte as convenções do realismo. Dividido em duas partes distintas — uma de fundo histórico e outra de caráter alegórico e fantástico —, o livro provoca reflexões sobre o poder, a hipocrisia, a corrupção e a natureza humana, tudo sob a ótica de um autor que conhecia profundamente a alma brasileira e latino-americana.
Enredo geral
Incidente em Antares se passa na fictícia cidade de Antares, localizada no extremo sul do Brasil, e se divide claramente em duas partes. Na primeira, intitulada “Antes do Incidente”, Veríssimo apresenta ao leitor a história de Antares, desde sua fundação até o ano de 1963. Nessa parte, o autor reconstrói com riqueza de detalhes a trajetória social, política e econômica da cidade, com destaque para as famílias rivais — os Campolargos (aristocratas conservadores) e os Vacarianos (sindicalistas e agitadores de esquerda). Essa primeira parte funciona como um grande painel histórico e sociológico, no qual Veríssimo constrói o cenário e os personagens que protagonizarão o “incidente”.
A segunda parte, “O Incidente”, narra um evento extraordinário: uma greve dos coveiros no cemitério de Antares impede o sepultamento de sete mortos — entre eles, um bêbado, uma prostituta, um violoncelista e membros da elite local. Inesperadamente, os cadáveres se recusam a permanecer calados, levantam de seus caixões e passam a circular pela cidade denunciando os crimes, as hipocrisias e os podres da sociedade antarese. A partir daí, o romance assume um tom abertamente satírico e surreal, provocando o leitor com críticas mordazes à política, à moral e à religião.
Sátira e crítica social
A força principal de Incidente em Antares reside em sua capacidade de combinar crítica social com um enredo criativo e provocador. Através dos mortos que voltam a falar e caminhar, Veríssimo expõe as podridões morais de uma sociedade marcada pela falsidade, pelo autoritarismo e pela desigualdade. A elite de Antares, que posa de respeitável, revela-se profundamente corrupta e hipócrita quando suas ações são reveladas pelos mortos, que não têm mais nada a perder — nem vida, nem reputação.
A escolha de mortos como veículos da verdade é altamente simbólica: apenas os que já estão fora do jogo social têm a liberdade para denunciar a realidade sem medo de represálias. Com isso, Veríssimo questiona não só os valores da sociedade brasileira de sua época, mas também a legitimidade das instituições que sustentam a ordem social — como a igreja, o exército, a imprensa e os políticos.
Personagens e tipos sociais
Veríssimo constrói um leque de personagens que representam diferentes estratos da sociedade brasileira. Há desde o político conservador até o sindicalista revolucionário, passando pela prostituta marginalizada, o artista idealista, o bêbado e o burguês medíocre. Essa diversidade de tipos sociais permite ao autor explorar diversas contradições do Brasil do século XX.
Destacam-se figuras como:
- Rodrigo Cambará, descendente dos Campolargos e herdeiro da tradição política da cidade, é uma espécie de anti-herói que representa a decadência da aristocracia sulista. Rodrigo, aliás, aparece também na trilogia O Tempo e o Vento, consolidando o universo ficcional de Veríssimo.
- Dona Quitéria Campolargo, matriarca autoritária e símbolo do conservadorismo moral, que tenta manter a ordem e os “bons costumes” mesmo diante do absurdo.
- Bola Sete, o líder sindical que encabeça a greve dos coveiros, representando os conflitos sociais e a luta de classes presentes em Antares e, por extensão, no Brasil.
- O jornalista, que oscila entre denunciar e omitir, refletindo a posição ambígua da imprensa diante do poder.
Cada personagem funciona como uma peça crítica que compõe o tabuleiro da sociedade brasileira, e a forma como interagem com os mortos (ou tentam silenciá-los) evidencia seus medos, suas contradições e suas falências éticas.
O fantástico como crítica social
O elemento fantástico — cadáveres que voltam à vida e falam abertamente — é usado por Veríssimo não para fins escapistas, mas como um poderoso recurso de crítica social. A escolha do insólito serve para escancarar o real: por meio do absurdo, o autor nos faz ver com mais clareza a irracionalidade de determinadas convenções e estruturas sociais. Essa estratégia lembra obras de autores como Gabriel García Márquez e Jorge Luis Borges, que também usaram o realismo mágico ou o insólito como forma de iluminar contradições políticas e existenciais.
A crítica de Veríssimo, embora enraizada na realidade brasileira, é também universal. A denúncia da corrupção, da hipocrisia e do autoritarismo ecoa em diversas sociedades marcadas por desigualdades estruturais e elites que se mantêm no poder à custa da mentira e da repressão.
Estilo e linguagem
A linguagem de Érico Veríssimo em Incidente em Antares é clara, fluente e irônica. O autor utiliza a terceira pessoa, mas alterna tons — ora sério e analítico, ora sarcástico e mordaz. A narrativa tem ritmo envolvente, e os diálogos são bem construídos, com marcas típicas da oralidade gaúcha e brasileira.
O uso do humor é uma marca registrada da obra. Porém, trata-se de um humor ácido, que não poupa ninguém — nem esquerda nem direita, nem elite nem povo. É um humor que denuncia, que incomoda, que questiona. E isso torna o romance ainda mais relevante como instrumento de reflexão crítica.
Contexto histórico e político
Publicado durante a ditadura militar no Brasil (1964–1985), Incidente em Antares é uma obra corajosa. Embora se passe em um país fictício, suas referências ao regime de exceção, à repressão política, à censura e à tortura são claras. A greve dos coveiros, por exemplo, pode ser lida como uma metáfora das tensões trabalhistas sufocadas pelo regime, enquanto o silêncio imposto aos mortos revela a censura oficial que imperava na imprensa e nas artes.
Nesse sentido, o romance se insere na tradição da literatura engajada, que busca não apenas entreter, mas provocar reflexão e denunciar injustiças. Veríssimo, já consagrado e com reconhecimento internacional, usou seu prestígio para criar uma obra que driblasse a censura sem abrir mão da crítica.
Recepção e legado
Desde sua publicação, Incidente em Antares foi muito bem recebido pelo público e pela crítica. Sua mistura de humor, crítica social e narrativa envolvente fez do livro um sucesso de vendas e consolidou a posição de Érico Veríssimo como um dos grandes nomes da literatura brasileira. A obra já foi adaptada para televisão em minissérie da Rede Globo (1994), o que ampliou ainda mais sua popularidade.
Além disso, o livro é constantemente citado em estudos sobre literatura política e realismo fantástico no Brasil. Sua atualidade permanece viva, sobretudo em momentos de crise política e social, quando suas críticas parecem ganhar nova força.
Conclusão
Incidente em Antares é uma obra-prima do romance brasileiro do século XX. Sua mistura de sátira, política, fantasia e realismo cria uma experiência de leitura intensa e provocadora. Érico Veríssimo, com sua maestria narrativa, constrói uma crítica mordaz à sociedade brasileira, expondo seus vícios com humor e inteligência. O livro convida o leitor a refletir sobre temas profundos — poder, verdade, justiça, morte — e permanece atual e necessário, mesmo décadas após sua publicação.
Leitura indispensável para quem deseja compreender, com lucidez e ironia, os mecanismos sociais e políticos que moldam o Brasil — e o mundo.
Até mais!
Tête-à-Tête

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