Publicada em 1950, Além do Rio e Entre as Árvores é uma das obras mais controversas de Ernest Hemingway. Escrito após a Segunda Guerra Mundial, o romance marca o retorno do autor ao universo da prosa longa, após um longo intervalo desde Por Quem os Sinos Dobram (1940). Embora não tenha recebido o mesmo entusiasmo da crítica à época, essa obra oferece um retrato maduro, melancólico e introspectivo do próprio Hemingway — mais envelhecido, amargurado e ciente da mortalidade.

A história se desenrola em Veneza, cidade que assume papel simbólico na narrativa. O protagonista, coronel Richard Cantwell, é um militar americano de 50 anos, veterano de duas guerras, que sofre de uma doença cardíaca terminal. Ao passar um fim de semana na cidade italiana, ele revive memórias, confronta fantasmas do passado e vive um romance breve, porém intenso, com uma jovem aristocrata, Renata.


Enredo: uma despedida lenta e consciente

O romance se passa em apenas três dias, durante um fim de semana na Veneza do pós-guerra. O coronel Cantwell, consciente de que está à beira da morte, tenta encontrar alguma forma de dignidade e sentido em seus últimos dias. Ele busca a beleza nas pequenas coisas — o gosto de um vinho, o aroma da cidade, a companhia silenciosa da natureza — e, sobretudo, no amor inesperado e improvável por Renata, uma jovem de apenas 19 anos.

Enquanto atravessa os canais venezianos, caça patos na região do rio Piave e saboreia jantares em restaurantes refinados, Cantwell revive suas experiências de guerra, sua juventude perdida, seus fracassos e ressentimentos. Tudo se passa como uma longa despedida. Não apenas do mundo, mas da própria vida como a conheceu.


A atmosfera da decadência

Um dos grandes méritos do romance está na criação de uma atmosfera decadente e nostálgica. O tom é lento, contemplativo, marcado por diálogos longos e monólogos internos. A Veneza retratada não é a cidade romântica dos turistas, mas uma cidade melancólica, úmida e silenciosa — cenário ideal para a introspecção de um homem que se prepara para morrer.

Cantwell é um personagem típico de Hemingway, mas diferente dos jovens heróis dos romances anteriores. Ele já passou por tudo: glória, trauma, amores, perdas e desilusões. Está cansado e ferido — física e emocionalmente. Seu corpo está falhando, sua alma está abatida, mas sua mente ainda é afiada e seu orgulho, intacto.


Renata: juventude, beleza e redenção

A relação entre Cantwell e Renata é, ao mesmo tempo, terna e incômoda. Com 30 anos de diferença entre eles, o romance pode parecer desequilibrado — e muitos críticos da época o interpretaram como um reflexo do próprio desejo de Hemingway de afirmar sua virilidade. Contudo, a figura de Renata vai além do estereótipo da jovem musa: ela representa a promessa de renovação, o consolo tardio, a beleza que ainda resiste ao tempo.

Ela escuta, compreende e acolhe o coronel com uma maturidade incomum. Ao mesmo tempo, sua presença acentua a tragédia da condição do protagonista: ele sabe que não pode manter aquele amor, que o tempo é curto, e que sua morte é certa. O amor, aqui, não redime completamente — mas ameniza a dor do fim.


Temas centrais

A morte como horizonte

A morte é o grande pano de fundo do romance. Está presente em cada gesto, em cada palavra do coronel. Ao contrário de outras obras de Hemingway, onde os personagens enfrentam a morte em batalha ou no meio da ação, aqui ela se aproxima lentamente, inevitável como o pôr do sol sobre a lagoa de Veneza.

Cantwell sabe que está morrendo — e Hemingway não suaviza essa consciência. A morte aqui é íntima, física, iminente. Mas, como em outras obras do autor, o protagonista não se rende ao desespero. Ele encara o fim com a coragem silenciosa que Hemingway admirava: o estilo diante da derrota.

A memória como refúgio e prisão

Grande parte do romance é construída por meio de memórias. O passado retorna em ondas: os momentos na Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra, os amigos mortos, os amores perdidos. Cantwell revisita tudo isso com um misto de saudade e amargura.

Para ele, a memória é uma forma de manter-se vivo, mas também um fardo. Há ressentimento, sobretudo em relação ao exército americano e ao modo como foi tratado após seus serviços. Ele se sente traído, descartado. Ao mesmo tempo, busca manter viva a memória dos companheiros de batalha, como uma forma de justiça e lealdade.

O amor como último abrigo

O relacionamento com Renata ocupa um lugar central no romance. Não é um amor idealizado nem um romance clássico. É, antes, um amor do fim da vida: rápido, intenso, incompleto. Para Cantwell, é a última chance de sentir algo verdadeiro. Para Renata, é uma forma de amar alguém com profundidade, apesar da diferença de idade.

Esse amor, embora condenado pela morte iminente, oferece uma pausa na dor. Um sopro de humanidade em meio à decadência.

A estética da resistência

Como em outros livros de Hemingway, há um código moral implícito: o homem digno é aquele que mantém sua integridade diante da perda. Cantwell, mesmo doente, orgulhoso e rancoroso, ainda se apega à beleza, à ordem, à honra pessoal.

Ele não se entrega à autocomiseração. Luta por manter a compostura — na mesa, nas palavras, no amor. Essa resistência contra a degradação física e moral é, para Hemingway, a forma mais pura de heroísmo.


Estilo e crítica

O estilo de Hemingway em Além do Rio e Entre as Árvores mantém sua prosa econômica, porém carrega mais repetições, digressões e um ritmo mais lento do que em obras anteriores. Muitos críticos da época acusaram o livro de ser autoindulgente e até mesmo tedioso. Alegavam que a narrativa se perdia nos devaneios do coronel e na idealização do relacionamento com Renata.

Por outro lado, leitores mais atentos perceberam o romance como uma obra de maturidade amarga, que exige paciência e sensibilidade. A lentidão do enredo reflete a própria condição do personagem principal: alguém que sabe que o tempo é curto e que cada gesto deve ser saboreado com atenção.

Hoje, o livro é lido com mais empatia — sobretudo como uma peça íntima do próprio Hemingway, que ali espelha seus temores, frustrações e desejos de redenção.


Paralelos autobiográficos

É impossível ignorar o quanto o coronel Cantwell reflete o próprio Hemingway. Na época em que escreveu o livro, o autor tinha mais de 50 anos, sentia o peso das guerras, vivia um romance com uma jovem italiana e sofria com problemas de saúde.

Cantwell é um alter ego evidente — e o romance é, de certo modo, uma espécie de confissão velada. A tentativa de Hemingway de lidar com seus próprios limites, com a perda da juventude e com a aproximação da morte.


Conclusão

Além do Rio e Entre as Árvores é uma obra densa, melancólica e profundamente pessoal. Não possui a mesma força narrativa de O Velho e o Mar ou Por Quem os Sinos Dobram, mas oferece uma visão única do Hemingway mais envelhecido — aquele que já não celebra mais os feitos heroicos, mas sim os pequenos gestos de dignidade diante do fim.

É um livro sobre um homem que sabe que vai morrer, mas que ainda busca sentido na beleza, na memória e no amor. Que resiste à decadência com o que lhe resta: a palavra, o gesto, o afeto. Não é uma obra para todos os leitores — mas para aqueles que enfrentam ou já enfrentaram a finitude com lucidez, pode ser profundamente tocante.


Até mais!

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