Publicado em 1938, Olhai os Lírios do Campo é uma das obras mais conhecidas e lidas de Érico Veríssimo, escritor gaúcho que marcou a literatura brasileira do século XX com sua linguagem clara, envolvente e profundamente humanista. Este romance inaugura uma fase mais existencial na obra do autor, refletindo sobre temas como ambição, culpa, amor, escolhas e, acima de tudo, a busca por um sentido autêntico para a vida.

Inspirado no conhecido versículo bíblico do Evangelho de Mateus — “Olhai os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam” —, Veríssimo constrói uma narrativa que, mesmo enraizada no contexto brasileiro dos anos 1930, assume um tom universal e atemporal.


Enredo: a confissão de Eugênio Fontes

A história é centrada em Eugênio Fontes, médico formado, bem-sucedido financeiramente e socialmente, mas profundamente infeliz. O romance começa com uma carta que ele escreve à filha recém-nascida, explicando os erros e omissões de sua vida. A partir daí, desenrola-se um grande flashback que revisita sua trajetória desde a infância pobre até sua ascensão na elite da sociedade.

Filho de um cocheiro e marcado por uma juventude de privações, Eugênio cresce com um desejo feroz de superar a miséria e ganhar respeito social. Na universidade, conhece dois personagens decisivos: Olívia, estudante de enfermagem, idealista e politicamente engajada, e Alfredo, amigo rico, arrogante e cínico. Olívia torna-se seu grande amor, mas Eugênio, dominado pela ambição e pelo medo de regressar à pobreza, rompe com ela e casa-se com Maria Luísa, filha de um empresário rico.

Ao longo dos anos, Eugênio conquista prestígio, bens materiais e uma posição invejável na sociedade. Contudo, isso não lhe traz paz. Sua vida torna-se vazia, marcada por um casamento sem amor, relações superficiais e o constante peso de uma consciência inquieta. O reencontro com Olívia, anos mais tarde, reabre antigas feridas e o coloca diante de uma verdade incômoda: ele construiu sua vida sobre uma mentira.

A morte de Olívia, que lhe confia a guarda da filha que tiveram juntos, é o ponto de virada definitivo. A partir disso, Eugênio inicia um processo de autoconhecimento, de revisão de valores e busca por redenção. A carta à filha é, assim, seu testemunho íntimo e doloroso.


Temas principais: ética, egoísmo e redenção

A força de Olhai os Lírios do Campo está na profundidade com que Veríssimo aborda conflitos morais e existenciais. O grande tema do livro é a contraposição entre o ter e o ser. Eugênio, ao escolher o caminho da riqueza e do status, abandona o amor verdadeiro, os amigos sinceros e seus próprios ideais. Sua trajetória é uma metáfora clara do risco de viver apenas em função das aparências e do sucesso social.

O romance trata também da alienação da elite brasileira, cuja vida é construída sobre privilégios e indiferença ao sofrimento alheio. Eugênio, mesmo como médico — profissão associada ao cuidado —, atua de forma cínica, mais preocupado com lucros e reconhecimento do que com seus pacientes.

A culpa é outro elemento central. O protagonista vive dilacerado por suas escolhas, em constante negação de si mesmo. O reencontro com Olívia e, depois, com a filha, representa a possibilidade de recomeço, de redenção pessoal. Ao voltar-se para valores humanos — simplicidade, amor, compaixão —, Eugênio finalmente encontra sentido e paz.

Além disso, Veríssimo introduz de forma sutil críticas ao capitalismo desumanizante, às convenções sociais hipócritas e à passividade da sociedade diante das injustiças.


Personagens: arquétipos e humanidade

Embora o romance seja focado quase inteiramente na visão e sentimentos de Eugênio, os demais personagens são fundamentais para dar densidade à narrativa.

Olívia é, talvez, a figura mais admirável da história. Forte, sensível, idealista, ela representa o amor verdadeiro e o compromisso com os outros. Seu engajamento político e social é um contraponto à frieza e ao egoísmo de Eugênio. Olívia é o “lírio do campo”: pura, generosa, desinteressada — em contraste com o mundo materialista ao redor.

Maria Luísa, por sua vez, é o retrato da elite alienada, presa à superficialidade, sem sensibilidade ou empatia. Seu casamento com Eugênio é conveniente, mas vazio — uma troca de status social, não de sentimentos.

Alfredo, o amigo burguês de Eugênio, cumpre o papel do cínico, aquele que já desistiu de qualquer ética e vive unicamente para o prazer, o poder e o dinheiro. É a caricatura cruel do homem prático, sem escrúpulos.

Até mesmo personagens secundários, como o pai de Eugênio, com sua dignidade humilde, ou o velho professor idealista, oferecem contrapontos morais importantes ao percurso do protagonista.


Estilo e estrutura narrativa

Érico Veríssimo adota um estilo direto, emocional e introspectivo. A narrativa, escrita em terceira pessoa com longos trechos em discurso indireto livre e cartas, mergulha profundamente nos pensamentos e sentimentos de Eugênio. Isso faz com que o leitor acompanhe, quase como um confidente, sua jornada interna de transformação.

A linguagem é simples, mas poética. Veríssimo evita o rebuscamento, optando por frases bem construídas e acessíveis, com passagens de forte apelo lírico e emocional. Essa escolha o aproxima de um público amplo, o que explica em parte o grande sucesso popular do romance.

A estrutura de flashback — com o presente sendo narrado por meio da carta e o passado sendo reconstruído em retrospectiva — permite uma narrativa fluida e reflexiva, ideal para o mergulho psicológico proposto pelo autor.


Recepção e impacto

Na época de seu lançamento, Olhai os Lírios do Campo causou forte impacto e vendeu milhares de exemplares — um feito notável para a literatura brasileira nos anos 1930. Parte do sucesso se deve à identificação imediata do público com os dilemas morais de Eugênio e ao estilo direto do autor.

Alguns críticos da época torceram o nariz para o que consideraram um romance “moralista” ou “sentimental demais”. No entanto, com o tempo, a obra foi sendo reavaliada, e hoje é vista como um dos marcos do romance urbano e psicológico brasileiro, ao lado de autores como José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado.

Sua leitura continua relevante — especialmente em um mundo marcado pelo culto ao sucesso, pela competitividade e pela perda de valores humanos. A crise existencial de Eugênio ecoa em muitos profissionais modernos, que, mesmo com carreiras consolidadas, enfrentam o vazio de uma vida sem propósito.


Relação com a Bíblia: mais do que uma citação

O título do romance remete diretamente ao Sermão da Montanha, em que Jesus convida seus ouvintes a não se preocuparem demasiadamente com o amanhã ou com os bens materiais, e a confiarem na providência divina. Os “lírios do campo”, que não trabalham nem tecem, mas são mais bem vestidos que o rei Salomão, tornam-se símbolo da simplicidade e da confiança.

No romance, essa metáfora ganha uma leitura existencial: é possível viver de forma mais leve, autêntica e conectada ao essencial, mesmo em meio a uma sociedade que valoriza apenas status e acúmulo. Olívia é a encarnação desse ideal; Eugênio, sua negação e, depois, seu aprendiz.


Conclusão

Olhai os Lírios do Campo é um romance de crise, de queda e ascensão moral, de perdas e reencontros. Nele, Érico Veríssimo examina com rara sensibilidade os dilemas éticos de um homem dividido entre a ambição e a consciência, entre o conforto material e a verdade emocional.

É uma obra que convida à introspecção, à revisão de valores e ao reencontro com a essência do humano. Sua mensagem continua atual: não basta vencer na vida — é preciso saber por que e para quem se vive.

Com sua narrativa envolvente, personagens marcantes e reflexão profunda, Veríssimo reafirma aqui seu compromisso com uma literatura não apenas estética, mas também ética — aquela que toca, transforma e humaniza.


Até mais!

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