Memorial de Aires (1908) é o último romance escrito por Machado de Assis, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Considerado uma obra de transição entre o século XIX e o XX, o livro reflete a maturidade literária do autor, marcada por uma visão crítica e profundamente humanista da sociedade brasileira. Nesta obra, Machado abandona a agudeza da ironia dos romances anteriores, como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, para adotar um tom mais melancólico e reflexivo, no qual o foco recai sobre a passagem do tempo e as complexas relações humanas.

Publicado em 1908, Memorial de Aires é estruturado como um diário escrito pelo próprio protagonista, Aires, um homem já envelhecido que reflete sobre sua vida e os acontecimentos ao seu redor. Este romance de forma mais intimista é, assim, uma narrativa de memórias, onde se encontram uma série de questões sobre o indivíduo, a sociedade e o próprio processo de envelhecimento. No entanto, mesmo com um estilo mais contemplativo, a obra não perde a crítica social e a profundidade psicológica que caracterizam o estilo de Machado de Assis.


Enredo e Estrutura

A narrativa de Memorial de Aires é construída a partir de uma série de entradas no diário de Aires, um homem já em fase avançada de sua vida, que decide contar suas memórias e reflexões enquanto observa as mudanças no Rio de Janeiro do início do século XX. Aires é um homem que, ao longo de sua vida, desempenhou papéis importantes na sociedade, mas agora está no fim de sua jornada. A história gira em torno de sua observação e análise dos relacionamentos que surgem e desaparecem à sua volta, especialmente os que envolvem a jovem Adelaide e seu noivo, o diplomata Sergio.

A trama é simples, mas a maneira como Machado de Assis a desenvolve torna-a um retrato minucioso da vida social e das emoções humanas. Aires, como narrador, é introspectivo, o que nos permite acessar sua visão do mundo e suas percepções sobre os outros. Em suas memórias, ele nos apresenta uma reflexão sobre as tensões entre as gerações e sobre as mudanças que a sociedade brasileira estava atravessando, especialmente no que diz respeito às estruturas familiares, políticas e sociais.

Aires testemunha a relação entre Adelaide e Sérgio, um casal que possui um vínculo emocional profundo, mas também está envolvido em questões de classe e status. No entanto, mais do que a relação amorosa entre os dois, o romance de Memorial de Aires reflete sobre o distanciamento que o envelhecimento e o tempo impõem às pessoas, e como isso modifica a visão que se tem das relações pessoais e sociais. Para Aires, a sua reflexão sobre o passado se mistura com um certo desconforto ao observar as escolhas e atitudes de outros que ele considera mais jovens e imaturos. Ao mesmo tempo, ele se vê confrontado com seu próprio envelhecimento e a constatação de que a vida de fato é transitória.


A Reflexão sobre o Tempo e o Envelhecimento

O tema do tempo, como um elemento que marca e transforma os indivíduos, é central em Memorial de Aires. O próprio formato do romance — um memorial, ou diário, de um homem que olha para trás com a perspectiva da velhice — já é uma metáfora do processo de envelhecimento. Aires não apenas narra eventos de sua vida, mas reflete sobre eles com a sabedoria e a melancolia que o tempo lhe conferiu. O personagem está em um estágio da vida em que, ao mesmo tempo, observa com nostalgia e crítica as ações do passado, mas também sente o peso de uma época que está se esvaindo e se transformando à sua volta.

O envelhecimento é retratado de forma sutil, mas extremamente poderosa. Machado de Assis explora a fragilidade humana e a ideia de que, apesar do tempo e da experiência, o homem não está imune à dor das perdas e ao desapego das coisas e pessoas que constituem a identidade. O distanciamento que Aires sente das questões mais joviais e apaixonadas reflete o isolamento da velhice, onde as relações pessoais e até os ideais podem se distanciar daquilo que um dia foram. Esse distanciamento, no entanto, não é feito de maneira trágica ou pesada; ao contrário, a prosa de Machado de Assis mantém uma suavidade, um tom reflexivo que não carrega um juízo moral rigoroso, mas sim uma observação cuidadosa e humana.

Ao olhar para o passado, Aires também questiona as escolhas que fez e as decisões que tomou em sua vida. Existe uma sensação de que, ao refletir sobre o tempo, ele tenta entender o que foi efetivamente importante e o que não passou de ilusões passageiras. Ele observa os jovens ao seu redor e sente, com certo pesar, que suas atitudes e escolhas não se comparam à tranquilidade adquirida pela experiência.


A Crítica Social

Embora Memorial de Aires tenha um caráter mais introspectivo e psicológico, a crítica social permanece presente, ainda que de maneira mais sutil do que nos romances anteriores de Machado de Assis. O romance é uma representação da sociedade brasileira pós-abolição, onde os padrões de classe, status e poder começam a se redefinir. O Rio de Janeiro, com suas mudanças urbanas e sociais, serve como um pano de fundo para as questões pessoais e relacionais do romance, refletindo uma época de transição no Brasil.

Machado de Assis, por meio de sua escrita, oferece uma crítica à sociedade carioca do começo do século XX, marcada por uma classe média crescente, por um aumento das distinções sociais e pelo confronto entre as tradições da monarquia e as promessas da República. Esse contexto de mudança e transformação é um reflexo das próprias inquietações de Aires, que se vê confrontado com uma realidade social que ele já não compreende completamente. A figura de Aires, que em seus dias foi uma pessoa influente, agora observa com ceticismo e perplexidade a sociedade ao seu redor.

Essa crítica se estende também às relações familiares e amorosas, que em Memorial de Aires são marcadas por convenções e expectativas sociais. O romance apresenta casamentos e relacionamentos que estão, em certo sentido, presos às normas rígidas da sociedade, mas também questiona a profundidade e a sinceridade dessas relações. O vínculo entre os personagens mais jovens — como Adelaide e Sérgio — é analisado com uma sensibilidade que questiona não apenas a validade dos seus sentimentos, mas também a influência das convenções sociais nas escolhas individuais.


O Protagonista Aires

O personagem de Aires é central para a construção do romance e a maneira como ele se vê no final de sua vida traz à tona questões existenciais e psicológicas complexas. Aires é um personagem profundamente reflexivo, alguém que, mesmo em sua velhice, está à procura de sentido em um mundo que está mudando rapidamente. Sua introspecção é uma chave para entender a obra: ele observa as situações ao seu redor, mas ao mesmo tempo se percebe distante, imerso em seus próprios questionamentos.

Sua relação com o passado é uma das partes mais emocionantes do romance. Ele observa as coisas com uma distância que é característica de quem já experimentou o desgaste do tempo, mas ao mesmo tempo busca encontrar respostas para as próprias escolhas que fez ao longo da vida. A sua busca por compreensão é uma das principais forças motrizes da obra, dando ao leitor uma sensação de que o romance, embora narrado por um homem do passado, é também uma reflexão sobre a própria condição humana.


A Escrita de Machado de Assis

A escrita de Machado de Assis em Memorial de Aires é, como sempre, marcada pela precisão e sofisticação. O autor utiliza uma linguagem simples, mas carregada de profundidade, para criar uma atmosfera de melancolia e introspecção. A estrutura do romance, composta por uma série de entradas no diário de Aires, contribui para o tom reflexivo da obra, permitindo que o autor explore a psicologia do protagonista de maneira mais profunda.

Além disso, a ironia e o humor, que são características marcantes de outros romances de Machado de Assis, estão presentes, mas de uma forma mais contida. Em Memorial de Aires, o autor usa a ironia para fazer observações sutis sobre a sociedade e os sentimentos humanos, mas sem a mesma intensidade de crítica social encontrada em obras anteriores. Isso confere à obra um tom mais calmo e reflexivo, que é adequado ao tema do envelhecimento e da passagem do tempo.


Conclusão

Memorial de Aires é um romance de grande importância na obra de Machado de Assis, não apenas porque é o último livro do autor, mas porque oferece uma reflexão profunda sobre a vida, o envelhecimento, o tempo e a sociedade. Através da figura de Aires, Machado de Assis explora as questões universais do ser humano e as complexas relações que definem a nossa experiência no mundo.

A crítica social e psicológica que permeia a obra é feita de forma sutil e introspectiva, com a melancolia da velhice servindo como pano de fundo para questionamentos existenciais e observações agudas sobre a sociedade. Em sua última obra, Machado de Assis mostra uma sensibilidade ímpar para os dilemas do ser humano, criando um romance que, apesar de sua simplicidade na trama, é profundamente complexo e significativo.

Memorial de Aires é, portanto, uma obra indispensável para entender não só o pensamento de Machado de Assis, mas também a evolução da literatura brasileira, pois encerra de forma magistral o ciclo de um dos maiores escritores da história da literatura mundial.


Até mais!

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