Um jogo de lógica mortal: Hercule Poirot enfrenta um serial killer alfabético

Agatha Christie, conhecida como a “Rainha do Crime”, escreveu dezenas de romances policiais ao longo de sua carreira, mas poucos são tão engenhosos e envolventes quanto Os Crimes ABC, publicado originalmente em 1936. Neste livro, a autora apresenta um serial killer metódico e perturbador, cujo modus operandi segue a ordem alfabética, tanto nas cidades onde comete os crimes quanto nos nomes de suas vítimas.

Com o icônico detetive Hercule Poirot no centro da investigação, Os Crimes ABC é um thriller psicológico e investigativo que desafia o leitor a pensar logicamente e prestar atenção aos mínimos detalhes, enquanto mergulha nos limites da razão e da insanidade.


Enredo

Tudo começa quando Poirot recebe uma carta anônima, desafiadora e escrita com tom zombeteiro, assinada por um tal de “ABC”. A carta anuncia que um assassinato ocorrerá em Andover em uma data específica — e, de fato, a previsão se cumpre: a senhora Alice Ascher é brutalmente assassinada em sua pequena tabacaria.

Logo em seguida, uma segunda carta chega, apontando para a cidade de Bexhill, e uma jovem chamada Betty Barnard é assassinada. Depois, a trama avança para Churston, onde Sir Carmichael Clarke é a próxima vítima.

O padrão é evidente: as cidades seguem a ordem alfabética (Andover, Bexhill, Churston) e os nomes das vítimas também (Ascher, Barnard, Clarke). Em cada cena do crime, é deixado um exemplar do Guia ABC dos Caminhos de Ferro da Grã-Bretanha, como assinatura macabra do assassino.

Enquanto a polícia se esforça para acompanhar o padrão e evitar novos crimes, Poirot lidera uma investigação paralela, utilizando não apenas sua lógica implacável, mas também sua sensibilidade para os aspectos psicológicos do caso. A verdadeira identidade do assassino, no entanto, reserva uma reviravolta surpreendente, digna do talento característico de Christie.


Personagens principais

Hercule Poirot: O famoso detetive belga, meticuloso e vaidoso, utiliza sua “ordem e método” para desvendar o caso. Aqui, ele demonstra seu lado mais psicológico, atento aos padrões mentais do criminoso.

Capitão Hastings: Narrador da história e amigo fiel de Poirot. Sua perspectiva ajuda o leitor a acompanhar o raciocínio do detetive, ao mesmo tempo que representa o leitor comum, muitas vezes enganado pelas pistas falsas.

Inspetor Crome: Representa a polícia oficial. Inicialmente desconfiado das teorias de Poirot, ele acaba colaborando na investigação.

Alexander Bonaparte Cust: Um homem tímido e enigmático, vendedor ambulante de escovas e com crises de epilepsia. É encontrado com fortes evidências contra si, mas sua culpa é mais complexa do que parece.


Estilo e narrativa

Agatha Christie utiliza aqui seu estilo característico: capítulos curtos, diálogos ágeis, construção minuciosa do mistério e pistas deixadas sutilmente pelo caminho. A história é narrada em primeira pessoa por Hastings, o que oferece ao leitor uma visão limitada dos acontecimentos, ao mesmo tempo em que mantém a aura de suspense e incerteza.

O que diferencia Os Crimes ABC de outros romances da autora é sua estrutura serial — uma rara incursão de Christie no subgênero do serial killer, que se tornaria mais comum décadas depois. Esse formato permite à autora brincar com o tempo e o espaço, e cria uma sensação crescente de urgência: será possível impedir os próximos crimes antes que o alfabeto se complete?

Além disso, a narrativa intercala capítulos que mostram o dia a dia de Cust, levando o leitor a acompanhar de perto a mente perturbada do suposto assassino. Isso amplia o suspense e levanta questões sobre culpabilidade, manipulação e a fragilidade da mente humana.


Temas abordados

1. Ordem versus caos

O crime segue uma ordem alfabética, um padrão supostamente racional — mas que esconde um ato de violência pura e irracional. O jogo entre lógica e loucura está no coração do livro. Poirot representa a razão e a análise fria, enquanto o assassino simboliza a distorção da ordem em favor da destruição.

2. Psicologia do criminoso

Neste romance, Christie mostra interesse especial pela mente do assassino, antecipando em décadas o foco que obras modernas dariam à psicologia criminal. O modo como o culpado manipula a percepção pública, planta pistas e engana a polícia é parte essencial do mistério.

3. Manipulação e aparência

A autora brinca com as aparências: nada é exatamente o que parece. Os leitores, assim como os personagens, são levados a conclusões precipitadas com base em evidências aparentemente óbvias. O verdadeiro vilão, porém, opera nas sombras.

4. Crítica social discreta

Embora sutil, Christie traça um retrato da sociedade britânica entre guerras, marcada por preconceitos, rigidez moral e isolamento social. O próprio Cust é um homem invisível para a sociedade, um “ninguém”, o que o torna um alvo fácil para a manipulação.


Pontos fortes da obra

Originalidade do enredo – A ideia de um assassino seguindo a ordem alfabética é criativa e engenhosa, e ainda hoje impressiona pela simplicidade e eficácia.

Ritmo e tensão crescentes – Cada novo assassinato aumenta a pressão, e o leitor sente-se compelido a seguir adiante para tentar, junto de Poirot, impedir o próximo crime.

Reviravolta final brilhante – A conclusão, como em tantos livros de Christie, subverte as expectativas e oferece uma explicação que dá novo sentido a toda a trama.

Profundidade psicológica – Ao contrário de obras mais superficiais do gênero, Os Crimes ABC mergulha na psicologia do criminoso e questiona o que leva alguém a cometer crimes tão metódicos.


Possíveis limitações

Caracterização superficial de algumas vítimas – Por seguir o padrão do serial killer, algumas vítimas servem mais ao propósito do enredo do que como personagens desenvolvidos.

Narrativa distante do emocional – Como em outros livros de Christie, o foco está no mistério lógico, e não em aprofundar relações humanas ou emoções intensas.


Considerações finais

Os Crimes ABC é um dos romances mais intrigantes e inovadores de Agatha Christie. Lançado em uma época em que o conceito de “serial killer” ainda era pouco explorado na literatura, o livro antecipa questões e estruturas que mais tarde seriam exploradas por autores contemporâneos como Thomas Harris e Patricia Highsmith.

Com um enredo habilmente construído, personagens marcantes e um final surpreendente, esta obra reafirma o talento de Christie para criar mistérios envolventes, lógicos e, ao mesmo tempo, profundamente humanos.

Leitores que buscam uma narrativa inteligente, bem escrita e com uma pitada de tensão psicológica encontrarão em Os Crimes ABC uma leitura memorável. É um livro ideal tanto para quem está começando no universo da autora quanto para fãs que desejam reencontrar Poirot em uma de suas investigações mais desafiadoras.


Frases marcantes

“Tudo estava cuidadosamente planejado — cada detalhe. E, no entanto, algo não está certo.”

“Os crimes mais inteligentes são aqueles que se escondem atrás da lógica.”


Até mais!

Tête-à-Tête