Publicado originalmente em 1958, Os Donos do Poder é uma das mais importantes obras de análise sociopolítica do Brasil, escrita pelo jurista e historiador Raymundo Faoro. O livro oferece uma explicação profunda e detalhada sobre a formação do Estado brasileiro e a maneira como as elites dominantes, desde o período colonial até o século XX, consolidaram e mantiveram o poder. Ao abordar o conceito de “patrimonialismo” como eixo central da organização política brasileira, Faoro traça uma linha de continuidade entre o colonialismo português e a estrutura de poder que prevalece no Brasil contemporâneo.
A obra é frequentemente lida como um estudo que vai além da história política, aprofundando-se nas dimensões sociais, econômicas e culturais que moldaram o país. Faoro parte da análise do patrimonialismo português para entender como o Estado e as elites brasileiras se estruturaram ao longo dos séculos, criando um sistema fechado e elitista que permanece resiliente às tentativas de democratização. Ao longo de suas mais de 700 páginas, Os Donos do Poder se estabelece como uma obra fundamental para compreender a dinâmica do poder no Brasil e as dificuldades históricas para o desenvolvimento de um sistema político mais inclusivo e participativo.

Patrimonialismo e o Estado Brasileiro
Um dos conceitos centrais na obra de Faoro é o “patrimonialismo”, uma categoria herdada da sociologia de Max Weber. O termo se refere à forma de organização política e social em que o Estado é apropriado por uma elite dominante que o administra como uma extensão de sua propriedade privada. No contexto brasileiro, Faoro argumenta que essa tradição patrimonialista foi legada pela Coroa portuguesa e, mesmo após a independência, foi perpetuada pelas classes dirigentes locais.
No caso português, Faoro descreve o patrimonialismo como sendo consolidado por uma elite burocrática e estatal que, ao longo do período colonial, governava em nome da Coroa. Ao contrário de outras colônias americanas, onde havia uma burguesia comercial ou industrial relativamente autônoma, no Brasil, a elite estava sempre profundamente ligada ao Estado. Desde o início, as classes dirigentes brasileiras, ao invés de promoverem uma economia de mercado independente, preferiram manter uma aliança com o poder estatal, garantindo sua sobrevivência e influência através do controle direto do aparato burocrático.
Essa herança patrimonialista, argumenta Faoro, impediu o surgimento de uma verdadeira democracia no Brasil. As elites controlavam o Estado e utilizavam esse controle para se perpetuar no poder, mantendo as massas populares excluídas do processo político. Mesmo após a independência, o Brasil não experimentou uma ruptura significativa com essas práticas. A monarquia e, posteriormente, a República mantiveram o caráter patrimonial do Estado, onde a política era dominada por oligarquias regionais que utilizavam o poder estatal para promover seus próprios interesses.
O Papel da Burocracia
Um aspecto crucial de Os Donos do Poder é a ênfase que Faoro coloca sobre o papel da burocracia na formação e manutenção do Estado brasileiro. Desde a época colonial, a administração pública esteve nas mãos de uma elite burocrática que, embora subordinada à Coroa portuguesa, possuía grande autonomia e poder. Esse grupo, que Faoro chama de “estamento burocrático”, foi responsável por governar o Brasil por meio de uma complexa rede de clientelismo e favoritismo.
A burocracia, segundo Faoro, foi a base sobre a qual o sistema patrimonialista se consolidou. Diferente das burguesias emergentes na Europa, que se fortaleceram por meio da acumulação de capital e da formação de uma economia de mercado, a elite brasileira encontrou na burocracia estatal o meio para garantir sua posição de poder. Essa burocracia, em vez de servir como instrumento de modernização ou democratização, atuou como um mecanismo de dominação, utilizando o Estado para manter suas prerrogativas e privilégios.
Faoro argumenta que esse fenômeno persiste mesmo após a independência do Brasil e durante a formação da República. O Estado continua a ser controlado por uma classe burocrática e política que impede o surgimento de uma verdadeira democracia representativa. O processo eleitoral, por exemplo, foi historicamente manipulado pelas elites regionais para garantir que o poder permanecesse nas mãos de uma pequena elite, e o voto popular era amplamente controlado por meio do clientelismo e do coronelismo.
A Crítica ao Liberalismo e ao Populismo
Ao longo de sua análise, Faoro também critica as tentativas de modernização política que surgiram no Brasil, como o liberalismo e o populismo. Ele argumenta que, em ambos os casos, essas ideologias foram incapazes de romper com o sistema patrimonialista, sendo, em última instância, absorvidas por ele.
O liberalismo, que se apresentou como uma solução para a modernização do Estado brasileiro, falhou em promover mudanças substanciais porque nunca conseguiu enfrentar diretamente o estamento burocrático. A elite liberal brasileira, ao invés de se engajar em uma verdadeira transformação democrática, preferiu acomodar-se dentro do sistema patrimonialista. As reformas liberais, na prática, serviram apenas para reorganizar o controle das oligarquias sobre o Estado, sem alterar a essência do poder patrimonial.
O populismo, por outro lado, emergiu como uma resposta às demandas populares por maior participação política. No entanto, Faoro aponta que os movimentos populistas, embora retoricamente voltados para as massas, também acabaram fortalecendo o Estado patrimonialista. O populismo, ao invés de democratizar o poder, frequentemente reforçou o controle do estamento burocrático, utilizando o apoio popular como meio para consolidar regimes autoritários.
Tanto o liberalismo quanto o populismo, segundo Faoro, foram incapazes de romper com as estruturas de poder que dominam o Brasil desde a época colonial. Ao contrário, essas ideologias foram instrumentalizadas pelas elites para manter o controle sobre o Estado e perpetuar o patrimonialismo.
A Formação do Estado Moderno no Brasil
Faoro também se debruça sobre a formação do Estado moderno no Brasil e os desafios para a construção de uma verdadeira democracia. Ele analisa como, ao longo do século XX, o Brasil passou por diversas tentativas de modernização política e econômica, mas que todas elas acabaram sendo limitadas pela estrutura patrimonialista.
A industrialização, por exemplo, embora tenha promovido um crescimento econômico significativo, não alterou as bases do poder político no Brasil. Faoro argumenta que o desenvolvimento industrial foi amplamente controlado pelo Estado, e as elites industriais mantiveram uma relação estreita com a burocracia estatal, garantindo que o poder permanecesse concentrado. Isso impediu o surgimento de uma burguesia independente que pudesse atuar como uma força democratizante.
A redemocratização do Brasil, especialmente após o fim da ditadura militar em 1985, também não conseguiu romper com o patrimonialismo. Faoro argumenta que, embora o Brasil tenha passado por uma transição formal para a democracia, as estruturas de poder herdadas do passado continuam a dominar o cenário político. O sistema eleitoral permanece amplamente controlado pelas elites regionais, e o Estado continua a ser utilizado como um instrumento de dominação política.
Relevância Contemporânea de Os Donos do Poder
Embora publicado originalmente em 1958, Os Donos do Poder continua sendo uma obra extremamente relevante para a compreensão da política brasileira atual. A análise de Faoro sobre o patrimonialismo e o estamento burocrático oferece insights valiosos sobre as dificuldades enfrentadas pelo Brasil na construção de uma democracia estável e inclusiva.
Nos últimos anos, o Brasil passou por crises políticas profundas, incluindo o impeachment de presidentes e escândalos de corrupção que expuseram as falhas estruturais do sistema político. A análise de Faoro ajuda a explicar como essas crises são, em grande parte, resultado de uma longa história de dominação das elites sobre o Estado. O patrimonialismo que ele descreve ainda pode ser observado nas relações entre o Estado e as elites políticas e econômicas, que continuam a utilizar o poder estatal para promover seus próprios interesses.
Os Donos do Poder é uma obra fundamental para quem busca compreender as raízes do poder político no Brasil e as razões pelas quais o país enfrenta tantas dificuldades para construir uma democracia sólida. A análise de Raymundo Faoro sobre o patrimonialismo e o estamento burocrático é profunda e bem fundamentada, oferecendo uma explicação detalhada sobre como o poder se consolidou e se perpetuou ao longo da história brasileira.
Embora tenha sido escrito há mais de seis décadas, o livro continua relevante para os debates atuais sobre a política brasileira, especialmente no que diz respeito à corrupção, à crise de representatividade e às dificuldades de modernização do Estado. Faoro oferece uma visão crítica e perspicaz sobre os problemas estruturais do Brasil e sugere que, para superar essas dificuldades, é necessário enfrentar as bases patrimonialistas que ainda dominam o sistema político.
Até mais!
Equipe Tête-à-Tête

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