Franklin de Oliveira | Correio da Manhã, 1959
Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental — 1.º volume, 670 páginas — Edições O Cruzeiro, Rio, 1959.
Não constitui apenas um empreendimento editorial o lançamento desta História da Literatura Ocidental, de Otto Maria Carpeaux. Ela é uma das mais fecundas contribuições culturais que o pensamento brasileiro já recebeu, ao longo da sua evolução. Numa literatura rara e relaxada e frouxa como a nossa, indiferente ou quase indiferente à vida dramática das idéias, vazia de todo problematismo, feita quase só de retórica e verbalismo, e na qual nos melhores autores sente-se uma incapacidade para pensar, uma aversão para os exercícios da inteligência e do entendimento; numa tal literatura marcada assim pela tônica da afetividade de superfície, surpreende a presença de um escritor como Otto Maria Carpeaux que vive numa permanente, ardente e intensa tensão espiritual.
Livro de uma inteligência dramática — dramática no senso de problematismo vital — é esta História da Literatura Ocidental — dramática não só pela palpitação dialética das idéias, como pela própria tentativa de preservação do patrimônio cultural do mundo europeu: o nosso mundo. Neste sentido, este livro é uma Heilsgeschichte, uma “história de salvação”. Europa, aqui é expressão totalizadora. Matriz, fonte, princípio, destino e fim de nossa vida espiritual. Não é um exclusivismo: refere-se ao que, nos reinos do espírito, o homem criou, e de mais belo, mais rico, e mais humano. A súmula das nossas experiências vitais. Mas não se ocupa Otto Maria Carpeaux apenas com as literaturas da Europa Ocidental — as românicas e germânicas, e suas bifurcações americanas; estuda as literaturas eslavas e as literaturas da Europa Oriental remontando, por vezes, às nossas raízes no Oriente.
Seu método, por isto, é aquele definido por Dilthey como o do Zirkel im Verstehen: o movimento circular do entendimento. Observe-se o método de Carpeaux — um vaivém de detalhes internos e referências externas, num incessante movimento do centro dos assuntos à sua periferia, e de sua borda ao seu núcleo vital. Como um bom hegeliano, conhece ele o valor da categoria da oposição, o valor da antinomia. Sabe que a contradição é a alma da realidade. E como ele se preocupa com a “biologia” e não com a “anatomia” do Espírito, ei-lo operando por meios antitéticos: a realidade é uma unidade compacta (gediegene Einheit) que não se entrega aos que a querem considerar apenas através de uma perspectiva, uma dimensão, um aspecto, um flagrante. Múltipla e vária, repele toda tentativa de simplificação, a qual não é mais do que um ato de empobrecimento, de “unilateralização”, de despojamento arbitrário.
A verdadeira análise do real, sob qualquer de suas formas, exige uma penetração mais profunda, uma matização mais fina, uma madura capacidade, madura e aguda, para a percepção das nuances, das singularidades íntimas, das diferenças sutis. A função da inteligência é esta e não outra: distinguir, em vez de contentar-se com os esquemas gerais, as fórmulas indiscriminativas, as receitas de pensamento que servem apenas para dar aos que não sabem pensar uma oportunidade para que aparentem capacidade de pensar. Um dos verbos que aparecem com maior freqüência nesta História da Literatura Ocidental não é outro senão este: distinguir. Dizia Warburg que Deus está nos detalhes. Deus também está com os que descobrem matizes e não com os de vista grossa, sensibilidade grosseira.
“A partir de tais postulados, Carpeaux abre horizontes inteiramente novos na história da literatura universal”
Num livro de 1929, Santa Teresa y otros ensayos, Américo Castro escrevia que “las historias de la literatura, usualmente escritas, satisfacen cada vez menos”. Em seguida indicava que elas “suelen usar criterios aburguesados, huyendo de la complejidad”. Este livro de Otto Maria Carpeaux nem usa critérios aburguesados, nem repudia complexidades. Antes, ama as complexidades. Antes, é um livro revolucionário, de onde vir a ser naturalmente um livro incômodo para os donos do “teatro” literário. O método que o Autor adota, combinação da análise histórico-sociológica com a análise estilística, caracteriza a complexidade do seu processo operativo.
Ele não vai apenas com um alforje ao encontro da realidade literária. Sabe que a análise puramente historicista ou sociológica deforma a Obra de Arte, por transformá-la em simples agente de valores estranhos à sua natureza intrínseca. Mas sabe também que análise puramente estilística implica em perda da consciência histórica, pois nenhuma Obra de Arte realiza-se fora de um contexto cultural, livre de conexões, ligações, correspondências, contatos com toda a larga esfera da experiência humana. Sua técnica operativa é a do hermeneuta: entender, compreender, interpretar, iluminar. A crítica literária é uma hermenêutica secularizada. Do entendimento exato do texto bíblico dependia a salvação da alma — eis porque nasceu a hermenêutica e, eis a que se destinava. Da exata interpretação do texto literário depende a salvação da literatura: eis porque nasceu a crítica, eis a que se destina. Tem, assim, a crítica literária origens sagradas, raízes teológicas: bem entender a letra e o espírito das Obras é como bem entender, bem ouvir a voz de Deus. As ciências do Espírito são uma aplicação profana da hermenêutica.
Dilthey abriu caminho para a estilística: análise de texto enquanto espírito e letra. O entendimento perfeito do texto reclama o entendimento de outras forças e valores que estão fora do texto, e que o situam historicamente, localizando-o no tempo, — forças que datam o texto. De onde a necessidade de enlaçar sociologia e estilística para o perfeito entendimento da obra de arte literária. Da combinação dos dois métodos resulta que o mais importante para um historiador literário ou de arte não é seguir o fio cronológico dos acontecimentos literários ou artísticos, mas desvendar, fixar, iluminar as relações estilísticas e ideológicas. Desse primeiro fato, resulta outro: o de não tratar as literaturas como compartimentos estanques. Deste segundo, um terceiro: o de tratar em cada capítulo todas as manifestações de um determinado estilo que hajam ocorrido nas diversas literaturas. Deste terceiro fato, resulta um quarto: o da compreensão dos estilos como manifestações de uma concepção geral de vida: “cosmovisão”, para empregar uma palavra abstrusa, mas muito em voga.
Temos, então, que o primeiro fato determina a compreensão total da obra de arte; e segundo, a eliminação das fronteiras nacionais e sua substituição pelo princípio ou visão da literatura como realidade supranacional. Nesta base será possível grandes deslocamentos literários no espaço e no tempo, como se vê nesta História da Literatura Ocidental, na qual, por força de imperativo estilístico, Plauto e Terêncio foram deslocados do âmbito da literatura romana para a literatura grega, pois pertencem estilística e ideologicamente a esta literatura e não àquela. Este deslocamento de uma literatura para outra atende à exigência do princípio supranacional, formulado por Fritz Strich. É um fato inteiramente novo nos tratados de história da literatura universal. O tratamento de todas as manifestações de um determinado estilo ocorridas em diversas literaturas determina o estabelecimento da história da literatura como história dos estilos.
Esse é um fato que, desde Riegel, Woefflin etc., verificou-se na história das artes plásticas. Mas não se pode aplicar processo específico de historiografia de uma arte a outra arte. De onde, a necessidade de alterações nos conceitos fundamentais, alterações que correspondam à singularidade de cada arte cuja história se escreve. A partir de tais postulados, Carpeaux abre horizontes inteiramente novos na história da literatura universal quando, por exemplo, preenche o vazio literário representado até agora pelo espaço compreendido entre os séculos VI e VII. A apresentação da Liturgia como obra literária, outro fato inteiramente novo na história literária, ocupa o vazio dos “séculos obscuros”. A visão dos estilos como concepção geral da vida permite a cunhagem de um conceito também inteiramente novo: o da literatura flamboyant.
Estamos aqui nestas notas enunciando apenas alguns dos pontos revolucionários desta História da Literatura Ocidental. É uma primeira notícia a se desenvolver em outras notas, sobre a obra monumental desse verdadeiro Kulturkampfer que é Otto Maria Carpeaux. Todos aqueles que se batem pela renovação dos métodos de crítica e história literárias no Brasil estão no dever moral de emitir opinião sobre um livro que tão profundamente renova crítica e historiografia literárias. Mas já uma cortina de silêncio se ensaia em torno do grande livro e, o que é mais lamentável com a concordância dos que, por terem desfraldado a bandeira da renovação dos métodos de estudo literário no Brasil, estavam na obrigação de uma outra atitude. Grandes livros são aqueles que alteram padrões vigentes. Mas se a reação dos “interesses criados” é, em todo mundo, a resposta natural dada aos renovadores, no Brasil esta resposta acrescenta à sua mesquinharia intrínseca a lama do nosso “beco literário”.
Franklin de Oliveira, ‘Espírito e letra do Ocidente’, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 jul. 1959, p. 8.

Até mais!
Equipe Tête-à-Tête

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